30.5.17

EXTRA EXTRA!!! JAMES BALDWIN IMPERDÍVEL!




O texto “Notas de um filho desta terra”, do inigualável James Baldwin – que foi totem de toda uma geração de excluídos, na literatura tanto quanto em suas vidas, e que existe até hoje, ainda em guetos, sustentando-se com farelos de afeto em prata comum –, publicado na Revista Serrote #15, na tradução de Donald M. Garschagen, é de uma literalidade e consciência que, raríssimas vezes, como se sabe, podemos encontrar juntas num mesmo escritor. É joia pura do início ao fim, e um passeio pelos nossos temores, nossos amores, nossas lacunas – assim como as da História.

Deixo um trechinho, logo após uma insurgência no Harlem...

“Na verdade, eu não me dera conta de que o Harlem tinha tantas lojas até todas arrasadas. A primeira vez que a palavra riqueza entrou na minha cabeça aplicada ao Harlem foi quando a vi dispersa nas ruas. Mas a primeira impressão incongruente da abundância foi imediatamente neutralizada por uma impressão de desperdício. Nada daquilo fazia bem algum a quem quer que fosse. Teria sido melhor terem deixado as vidraças e as portas de vidro como estavam e as mercadorias dentro das lojas. Teria sido melhor, mas também impossível, pois o Harlem tivera necessidade de alguma coisa para quebrar. Quebrar coisa é a necessidade crônica do gueto. Na maior parte do tempo, os habitantes do gueto quebram uns aos outros ou a si mesmos. Mas, enquanto as paredes do gueto estiverem de pé, sempre chegará o momento em que essas válvulas de escape não vão funcionar. Naquele verão, por exemplo, não bastava um sujeito arrumar uma briga na avenida Lenox ou esculachar os amigos nas barbearias. Se algum dia, de fato, a violência que enche as igrejas, os salões de sinuca e os bares do Harlem irromper de uma maneira mais direta, é provável que o Harlem e seus habitantes desapareçam numa inundação apocalíptica. O fato de não ser provável que isso aconteça se deve a grande número de razões, na maioria ocultas e fortes, entre elas a relação real do negro com o branco americano. Essa relação simplesmente proíbe uma coisa tão descomplicada e satisfatória como o ódio puro e simples. Para odiar de verdade os brancos, o negro apagar tanta coisa na mente – e no coração – que esse ódio se torna, ele próprio, uma pose exaustiva e autodestrutiva. Mas isso não quer dizer, por outro lado, que o amor venha com facilidade: o mundo branco é demasiado poderoso, complacente e ágil com humilhações gratuitas e, sobretudo, demasiado ignorante e inocente para isso. As pessoas são forçadas a fazer ressalvas perpétuas, e suas próprias reações estão sempre se anulando mutuamente. É isso, na verdade, que tem levado a todos, brancos e negros, à loucura. As pessoas estão sempre na situação de decidir entre a amputação e a gangrena. A amputação é rápida, mas o tempo pode mostrar que ela não era necessária – ou pode-se protelar demais a amputação. A gangrena é lenta, mas é impossível ter certeza de que se está lendo direito os sintomas. A ideia de passar o resto da vida aleijado é insuportável, como é da mesma forma intolerável o risco de inchar lentamente, e com agonia, devido ao veneno. E o problema, enfim, é que os riscos são reais, mesmo que não haja opções”.

***

“para james baldwin”

na maior parte do tempo
 os habitantes do gueto
quebram uns aos outros
ou quebram a si mesmos.

no gueto nada foge nunca
os habitantes do gueto
ou sofrem de gangrena
ou da perna que se amputa.

aqui servimos ao profeta
declama o pastor negro.
aqui ressalvas perpétuas
matam o gueto de medo.

mas chegará o momento
em que sumirá o gueto
numa inundação oculta.
lá fora restará a loucura.

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