10.12.12

"A Cena Inédita"


Um casal de adolescentes. Eles andam a passos firmes pela rua lotada. Uma rua lotada de gente pobre, com cheiro agridoce de cabaré e vendedores, de todos os tipos. De longe, mas não de muito longe, observo o casal, como se fosse qualquer outro casal. Mas o passo deles acelera, então penso que talvez aquilo seja uma briga de um casal adolescente e, talvez preocupado porque já não me lembrava mais como era uma briga de um casal adolescente, continuo acompanhando, mais de perto. De imediato reparo como transpiro e desfaleço muito mais do que o casal adolescente que, apesar de quase correr (e, já posso notar, discutir alto), não escorre um pingo. Então, numa freada brusca eles param; acerto em cheio uma velhinha, pois não tenho os mesmos freios de resposta imediata que têm os adolescentes. A velhinha parece contrariada, inicia uma discussão à qual não dou ouvidos. Creio que, inclusive, observando o casal o tempo todo com um dos olhos, tentei informá-la do acontecimento incrível que se passava bem ao nosso lado. “Veja bem, senhora”, digo, “trata-se de uma discussão de um casal adolescente, a senhora por acaso se lembra de como é isso?”. O efeito da frase não sai como esperado, e a senhora me acerta no flanco direito com uma sombrinha. Que espécie de senhora é essa que anda com uma sombrinha quando a temperatura beira os 40 graus centígrados? Não me atenho muito a isso. O casal está de frente, olhos nos olhos. Não distingo o que ouço, porque talvez eu ouça demais, e ouça, além de tudo, alguns sons desconhecidos dentro de mim mesmo. Talvez eu esteja quase me lembrando de algo muito importante que há muito foi esquecido. Ou talvez esteja prestes a inventar tudo outra vez, o que me entristece, mas é bem mais possível. O que importa é que ali está um casal adolescente, um de frente para o outro, uma menina que parece, porque carrega uma garrafinha cor de rosa na mão, muito menos experiente que o menino, que, apesar disso, parece bem mais abalado com tudo. Quase rio e imediatamente me sinto mal ao notar que a menina, apesar da garrafinha cor de rosa e do jeito todo cor de rosa de menina, já dispõe de uma frieza cínica típica das mulheres que, no fundo, sentem-se acuadas. O menino parece prestes a chorar. Num instante, pela postura de frieza cínica antecipada da menina em anos de desilusões que ainda virão e pelo desalento cheio de tamanho e ímpeto e músculos já quase formados do menino, sinto que há certamente um descompasso necessário entre os sexos, e que, se fôssemos compassados, talvez a coisa piorasse ainda mais. Este seria um pensamento estúpido, se não fosse totalmente verdadeiro. Mas muitos pensamentos absolutamente verdadeiros são estúpidos, talvez a maioria. Enquanto divagava na estupidez dos adultos, quase perdia a mais linda cena. O menino finalmente ouve algo que parece um soco no estômago, mas, como é muito forte, apenas se curva, vira lentamente para o lado, dando por alguns segundos as costas para a menina, parece refletir algo, provavelmente fora do contexto, então se vira novamente, estende a mão à menina. O mundo inteiro congela. A menina nega a mão. Ele então retira como um cavaleiro da távola redonda a mochila que leva no ombro e a coloca com suavidade, mas nervosamente, sobre o ombro da menina. A menina se concentra em levar a garrafinha cor de rosa à boca, fazendo barulhos desagradáveis e, na situação do menino, imagino que mais ainda. O menino dá as costas e sai em sua passada marcial, elegante, porém derrotada, como na maioria das vezes é a elegância e, no caso daquele menino, é também uma antecipação em anos de desilusões que ainda virão e que, imperceptivelmente, nos vão dando ares marciais. Neste momento me lembro de algo, que vem como um cuspe na cara. Algo parece recolocado, algo que eu um dia tive e me foi tirado. Demoro a identificá-lo, mas sei que está naquele menino arrasado, andando em passo marcial, olhando para baixo, às vezes gesticulando com o rosto retorcido para o lado. Nesse momento viro-me, preciso ver a menina. Ela segue andando, bem mais devagar, a todo o momento levando a garrafinha cor de rosa à boca, mas não ouço mais seus barulhos: sei que este algo a que me refiro e demoro a identificar está nela também. Sou acometido por uma completa sensação de ridículo, parado entre o casal adolescente que se separa, olhando ora para um, ora para o outro. Repentinamente a menina para. Penso milhares de coisa em um segundo. Terá desistido de tudo? O que fará o menino, se talvez nem ainda possa beber? Será que ela se apaixonou por outro menino, e ele soube agora? Ou talvez o ame de algum modo, mas precise deixá-lo partir, e talvez isso seja uma forma de amar mais comum do que parece... Staccato. Infantilmente, como um gato recém-nascido, a menina esconde-se atrás da mureta de um prédio e, estranhamente, parece muito tranquila. Prova disso é que continua bebendo da sua garrafinha cor de rosa, e já posso ouvir mais uma vez os barulhos desagradáveis. Além disso, posso jurar que vi um meio sorriso em seu rosto, desses de filme de terror barato. Mas tudo muito, extremamente infantil, escavando a essa altura o meu peito em busca de mais informações que ficaram por anos abandonadas. Deixo-a para trás. Ao tornar-se uma criança, automaticamente perde seu encanto adolescente, e de crianças não entendo. Além disso, sinto-me miserável com aquele meio sorriso de Conde Drácula e, acima de tudo, sinto muita pena do menino, mas talvez não acima da pena que sinto de mim mesmo. Ainda assim, por algum motivo, sigo já suando em bicas e vejo, a alguns metros, talvez muitos, o corpo do menino que, feito uma locomotiva cujo piloto se drogou, perde o controle em todo o seu peso de chumbo e fogo. Ainda assim, parecia uma locomotiva, e isso deve ser respeitado. Um homem arrasado torna-se automaticamente um homem atraente, contanto que não seja você mesmo. Mas ele andava rápido demais e eu já me sinto velho e cansado. De todo modo, pude ver quando, ultrapassando o último prédio da quadra, desviando por um fio de um ônibus, cujo motorista xingou um altíssimo palavrão incompreensível, ele girou feito um leão de circo o corpo para trás de uma mureta e, depois de descansar alguns segundos, fechar os olhos e abrir mil vezes, aproximou vagarosamente a cabeça e começou a espiar. Já eram duas crianças brincando de esconder. Eles se encontrariam outra vez, provavelmente em segundos. Senti-me extremamente velho, como que arremessado pela janela de um trem a todo vapor. Para não me sentir pior, decidi eu mesmo correr a toda velocidade, no que teria, aliás, dado um banho no fedelho, e cheguei à residência aos saltos para, desse jeito mesmo, escrever a cena inédita. Porque tem coisas de que precisamos correr para não esquecer jamais.

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