4.3.12

“Epifania para Roberto Bolaño ou Da leitura de Chamadas Telefônicas”

Você era pobre feito um rato mas vivia em trens viajando acima e abaixo e me fazendo pensar será que ele viaja num trem de carga como um vagabundo de Jack London mas acredito que não porque "fazemos literatura" justamente para driblar a história da literatura e com poucos escrúpulos salvar nossas vidas e afinal agraciar nossas biografias com pó falso e imagens chocantes só que na realidade mesmo não é assim tão interessante passar fome e pensar que não poderá ter filhos porque seria injusto e de repente invejar um mendigo que se deita na praça com seu galão cheio d’água porque neste momento eu também sou pobre feito um rato o que me liga a você no momento sobre o qual pensou ou inventou que pensou ao escrever as linhas que me protegeram de meu próprio futuro por alguns segundos e pobre feito um rato eu trabalho feito um cachorro e só às sextas-feiras tento me transformar num felino mas acabo sendo apenas pássaro de presa fácil e onde estão os trens as mulheres loiras de pernas finas e peitos grandes que tomam pílulas de felicidade rápida e desembestam com coragem por fortes frustrações que no fundo todas são de amor e as amamos sem saber o porquê afinal das grandes navegações se estamos no fim das contas confinados em nossos próprios pesadelos dos quais no fundo nos orgulhamos porque somos nós e só nós que os temos do nosso jeito e são pesadelos de amor e ódio e trapaças sujas e grandes arrependimentos velados e justamente porque torna-se a cada dia menos viável viver fora da bolha estrangeira em nossa terra e como não acordar chorando quando se chorou a vida inteira porque não se sabe mais chorar e será necessário na verdade viajar para bem longe e morrer numa terra de estranhos ou aguentar por aqui mesmo morrer fielmente de fome entre amigos mortos que não sorrirão sempre e precisarás de sorrisos acima de tudo sorrisos porque és sim simpático e poderemos quem sabe inventar uma nova comunidade já que a pobreza sem demora nos levará de volta aos abraços que não serão fraternos mas serão apertados e afinal darão os amigos mortos a mão no cume da confusão de tachinhas sobre a carne adormecida na gangrena das horas de nossos desejos vagos que me abandonaram e com todo o tempo do mundo não posso fazer a não ser escorrê-lo em lágrimas e deveria ter feito isso ou aquilo e como bom seria se e abrir mão da nova revolução dos ratos penteados em suas academias de ginástica e after parties enquanto que com fome feito um rato mas sem pente para os cabelos andarei fumarei beberei e livrar-me-ei um pouco com ancas habilidosas para músicas sem façanha e esperarei que venham um dia os livros que diziam naquela época eu era pobre feito um rato e havia aquelas léguas sem fim e a poeira das vaidades sobre nossos rostos marcados e cabeludos e pelo chão duro de purpurinas de um antigo carnaval porque eu queria apenas amar e ser amado feito um rato porque se pudessem me amar como tal eu seria pobre feito um rato e amado feito um rato e isso chamar-se-ia sintonia da espécie mas sei que pequei contra mim mesmo e o deus maior dentro de mim eu sinto que pequei e pagarei agora mesmo e ainda depois por meus pecados contra o patrimônio do mistério mas só na extravagância nós rompemos com os deuses e favorecemos os anjos uma pena que não exista um anjo-rato e de todo modo agora não importa porque não quero ser corajoso quero alguém embalando meus cabelos no colo de quem gostasse de ver-me chorar com meu desespero particular que eu sei deve ser o desespero de todo o mundo inclusive o teu que pobre feito um rato soube fugir da ratoeira onde a isca são fezes e pequenas causas.

Um comentário:

Anônimo disse...

fiquei sem ar e chorei, bj. mary