27.11.08

"um blue"

Então a música feita de fuligem se instalou provisoriamente por dentro das redomas do cérebro, e ele num piscar de olhos, muitos olhos em volta e por entre as moitas de calças arriadas, não estava mais ali, diante de máquinas feitas para não serem percebidas e sim eficientes na sua eficácia, mas ele não era de repente mais uma dessas máquinas e podia ouvir cordas, chocalhos grudados aos pés em choque violento com uma poesia analfabeta, a seqüência pulsante de que se precisa para suportar as esporas nas costas, o cavalo que suava pelas narinas, o povo de boca aberta, os pescoços vermelhos tilintando sob o sol, e ele não era mais máquina olhando para máquina apenas, havia na atmosfera algo que parecia espremer as existências para um canto sem oxigênio, havia o óleo quente e o cheiro de galinha frita, alguma risada desafinada e a lembrança de que somos todos feios em essência, de que, incompletos, arquejamos e esperamos ansiosamente pelo fim alheio, de que somos feitos de poeira cósmica e por isso devemos nos abraçar, unir os corpos feito elemento químico, e não era mais possível agora odiar a feiúra, negar a natureza como presente trabalhoso, sons muito agudos marcavam a chegada dos desajustados, a milenar cavalaria barroca, os traços de pele curtida rechaçada pelo sol com náusea, o gêiser de mil bocas abaixo da terra como que se mexendo, prestes a mudar de novo o quadro, e ali estamos todos em roda, não há mais porque falar em nada, somos a junção da existência e precisamos fazer seguir a ventoinha ceifadora, cacete falar em dicotomias mitológicas: bom-mau, bonito-feio, deus-diabo, estamos aqui e queremos tudo que não for diagnosticável, queremos a morte desprovida de sintoma, o toque de caixa exige que se preste atenção ao ritmo, as notas são pés negros que pulam do tiro que obriga a dançar – e de onde vocês acham que veio o reggae? – os pés sobre a brasa, a música primitiva dos homens sincréticos, dos negros fugitivos, a música dos contrabandistas de vinho barato, daqueles que recolhem tocos de cigarro do chão e, sempre elegantes, tiram o chapéu a quem passa, antes de lhe roubar a carteira, porque somos todos um pouco pedintes, rasgos ainda em sangue sensíveis ao artifício, por isso a música veloz, o murmúrio macambúzio por tragédias ancestrais, somos a música de após o maremoto, somos apóstolos vestidos com macacões sujos de graxa, mas isso por agora não é mais problema, chegue mais perto, não ligue para o cheiro forte, quanto à música, não se assuste, ela se torna mesmo mais rápida, assim, de um suingue como o coração ainda vivo, pegando fogo de repente no meio do ar, mas não perca o ponto, bata forte o pé no chão porque é música da terra, encha o peito de ar e sorria, pois pode ser a última vez – e será.

Então resta vestir o capuz, acomodar a corda em torno à garganta ressecada, as mãos impotentes não fazem mais acordes, estão trincadas uma na outra e delas agora escorre a seiva extinta, a música então desacelera, a paisagem fica por um instante esfacelada, todos fazem o sinal da cruz, mas deus sabe que chega a hora de cada um, e todos pensam: “mais um dia e não chegou minha vez” – a música pára somente quando não passa de um corpo dependurado.

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