23.9.08

"a vocês"

Gostaria de dar algumas palavras aos estupradores de crianças e até mesmo fetos ainda em formação, às bandeiras erguidas pelo próximo traidor, ao que me faz chorar em certas tardes gaiolas e eu não sei o nome dessa sensação que faz chorar, mas não é choro de quem perde, é choro de quem nunca teve, e não sei de nada e espero tudo, o homem cotidiano descrito por Camus, que se levanta e não quer fazer o mal por medo de ser punido por seres magnânimos e matemáticos.

E a eles eu gostaria de entregar algumas palavras. Aos que abrem estradas sobre corpos humanos, aos metafísicos da consolação, a todos os grandes poetas que espancavam com amoladores de faca, na escuridão dos sentidos, crianças indefesas, que de alguma forma crescerão para colher os louros do patife laureado. Aos que enrolam dinheiro com esparadrapos na cintura e estão prestes a explodir. Aos que farejam como porcos e se alimentam de entranhas.

Dedicaria, se tivesse a grandeza necessária, com firma autenticada em cartório e assinada por deus, algumas palavras aos ilustres freqüentadores de bordéis, senhores poderosos e bonecos na cama, tão iguais a vocês e a mim, mas menos iguais a vocês, prefiro pensar, vocês que viram a cabeça, vocês que cortam a corda, vocês que aplaudem o pôr do sol e, bêbados, matam. Vocês que dedicam poemas e, ensandecidos, levam as mãos à cabeça. Vocês que presenteiam mendigos com cachaça nas datas festivas e os atropelam pelo resto do ano.

Aos contrabandistas de emoções, delfins elaborados em barro sintético, dou portanto algumas palavras a vocês, atrozes espelhos de si, sorridentes dentro da sombra, hienas com o dedo em riste, assassinos em série, candidatos à Prefeitura.

O mundo é de vocês mas, não se enganem, ainda estamos aqui, do outro lado, do lado fantasioso, do lado ingênuo, do lado utópico, do lado ultrapassado, do lado alienado, chamem do que quiserem. Daqui vemos muito bem e também sabemos esperar. Não há cá muita sombra, mas a vista é privilegiada e ainda temos pernas. Nossa cabeça está um pouco avariada, somos produto de uma noite tenebrosa, mas talvez isso nos mantenha absurdos e, portanto, de acordo com a vida.

É por isso que dou, entrego, cuspo estas palavras no colo dos formadores de opinião grisalhos e pedófilos, dos ventríloquos de auditório simpáticos e inofensivos, por isso letais, aos pantagruélicos donos de negócios promissores, que geram milhões e são incapazes de escolher uma esposa decente. Aos adolescentes que apodrecem nos edifícios comerciais como enormes consultórios dentários, ao que sorri e apunhala pelo gosto doce do sangue pastoso, ao fratricida de mil olhos e com a palavra certa.

Por causa de vocês nos restou muito pouco, e disso fizemos um mundo. Vocês líricos byronescos de visão turva e passo manco. Vocês integralistas enjaulados na cadência envelhecida. Vocês caçadores de recompensa em forma de mais um pouco de tempo. Vocês que, munidos de façanhas milenares, garantem a própria lápide e nos mastigam os anos.

Aos demolidores de séculos, atacadistas sentimentais, devoradores da esperança, destino estas palavras, que terminarão em breve e serão pó como tudo:

A terra é árida, o terreno não muito fértil, usado pelo avesso, mas nas veias ainda corre o algodão. Vocês nos ensinaram a quebrar os pés quando precisávamos de abrigo, nos mostraram o desgraçado jogo da oferta. Vocês nos fizeram saber sem esperar por mais nada. Estamos aqui nus, sim, a pele desmanchada. São feias as marcas no corpo, obra compulsiva de uma espécie milagrosa. Mas aprendemos a atirar com a língua, somos bardos e nosso desafio são os dentes roxos. Nosso escudo é o coração, outros já disseram. Estaremos esperando por vocês, prontos.

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