21.6.08

"Hemingway Japonês - e Gay"




Uma coisa precisa ser dita ao se falar de Yukio Mishima (1925 – 1970): ele escreve como pensa. Apesar de quase óbvia, essa combinação é muito rara, tendo em vista que o ser humano não é óbvio.

Mishima incomoda a cabeça de qualquer um que, por não saber nada do que realmente acontece, acredita saber o suficiente, concorda ou discorda com a cabeça, e segue a vida.

Suas indagações acerca da pobreza da existência humana, as máscaras de um teatro grotesco, erguidas diante da perversão social, derrubam o leitor feito enxurrada, e foi sorte eu ter me levantado outra vez depois de terminar suas Confissões de uma Máscara (Companhia das Letras, 1949, 199 págs.).

Ele simplesmente cava, cava, cava sem parar. E quando o sangue é despejado diretamente sobre os ossos, então ele quebra os ossos, e é só então que ele sente seu verdadeiro prazer.

Yukio Mishima usa palavras como quem usa argila. Sua relação com a moral e com o bem e o mal é tão intrincada, que é simplesmente impossível saber exatamente até onde ele é capaz de descascar a cebola. Às vezes suas indagações atingem um ponto tal, que espera-se, olhando para os lados, que caia uma enorme pedra na nossa cabeça, como um castigo místico executado por um ente secreto, que nos esconde o fundamental das coisas.

Mishima vai ao fundamental das coisas. Um dia um amigo disse para eu ler Murakami, segundo ele, o Hemingway japonês. Ignorei meu amigo na hora, não lembro o que estava lendo ou mesmo se queria ler. Agora me deparo meio sem querer com esse livro de Mishima, usado também por alunos de psicanálise nas universidades.

Como Hemingway, Mishima aborda questões de um universalismo doloroso, obriga o leitor a dar conta do fardo de viver a vida sabendo antecipadamente que sobre a Terra nada é certo ou controlado, a não ser o nosso rumo inapelável à falência do corpo, e que tentar corrigir o que jamais poderá ser correto é cinismo e flagelação ecumênica. Mishima ensina o que é ser humano sem se basear em qualidades, mas sim nas sensações vitais, as que normalmente deixamos em segundo plano.

Para terminar, ambos não souberam reverter o cheque-mate que inventaram: Mishima e Hemingway. Suicidaram-se de forma bizarra.

Hemingway deu um tiro na boca com uma espingarda, que precisou disparar com o dedão do pé, pouco após ter ganhado o Prêmio Nobel. Mishima desde criança queria morrer de forma heróica, trucidado vivo de alguma forma. O fato de não ter sido convocado para a Segunda Guerra devido à saúde muito frágil foi motivo de profundo desgosto. Suicidou-se segundo a tradição samurai (seppuku), rasgando a barriga com uma espada e depois sendo decapitado.

Mais exibicionista que Hemingway, deu cabo à própria vida na frente de uma multidão, a quem antes fez discurso patriótico pela restituição da monarquia, solenemente ignorado. Acredita-se que Mishima tenha preparado seu suicídio por um ano.

Um pouco do inacreditável Yukio Mishima:

“O ideal universal de beleza das esculturas gregas também se aproxima da semelhança entre homens e mulheres. Não haverá aí um sentido oculto de amor? Será que nos recônditos desse amor não se anima o desejo inalcançável da exata semelhança entre os amantes? Não seria essa a ambição que move as pessoas e as conduz à trágica alienação de desejar que o impossível se torne possível a partir do extremo oposto? Em outras palavras, sendo o amor entre duas pessoas incapaz de se tornar semelhança mútua, não existiria um processo mental mediante o qual elas buscam enfatizar sua dessemelhança, valendo-se disso como uma forma de flerte? Infelizmente, ainda que alcançada, a semelhança mútua não passará de ilusão momentânea. E isso porque, mesmo que a menina se torne audaciosa e o menino, reservado, em algum momento eles se cruzarão a caminho do extremo oposto, ultrapassando o ponto almejado em direção à outra margem – ao além desprovido de parâmetros.”

(Confissões de uma máscara, pág. 69)

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