20.4.06

“a um amigo que me enviou um poema e outro que me enviou uma prosa”

os homens não sabem mais
que os outros animais;
sabem menos.
eles sabem o que precisam saber.
nós não.
(Fernando Pessoa)

inventamos os dragões para nos acender o sono
procuramos palavras que nos caibam nas botas
perdemos o sentido quando começamos a falar
deixamos de amar quando começamos a sentir
que o fogo febril do dragão nos queimou as asas.

existe tanto para se falar quanto pouco a se dizer
estamos sozinhos e talvez para mim seja importante
dizer que se quero falar e não sei é porque preciso
da tua porta que bate no meu riso de olhos fechados
espero que minha mentira se acomode no teu colo.

entre as árvores da nossa infância inventamos espaços
nos espaços entre as árvores existem as folhas mortas
elas amarelam e encolhem e apodrecem como a infância
perdida à deriva à procura das árvores que a faziam viva
e se tornaram invisíveis como você e eu no fim de nós dois.

o tempo a cada manhã cinza me pergunta através da janela:
você, pobre criatura desapegada, o que tem para fazer aqui?

esperando lágrimas que não se formam, respondo trêmulo:
nada tenho de importante a fazer neste lugar que você criou
mas já sei de algumas coisas pelas quais eu não vim para cá.

não vim para enganar inocentes com sussurros de esperança
para isso identifico logo os tipos escorregadios e tacanhos
o que me impede de apreciar a minha própria companhia.

não vim para me tornar um líder ou propor novos desafios
cada um que teça sua bandeira e seja Dom Quixote sozinho.

não vim também para me tornar um senhor careca e barrigudo
que desliza sobre o espelho gorduroso da noite no asfalto sujo
e foge da chuva como da morte com um saco de pão nas mãos.

tampouco vim para agarrar bundas pelas pontas dos desejos
ao contrário, vim para observar atentamente seu movimento
para garantir sua posseira na minha mente
porque as bundas carregam a liberdade
é um crime aprisioná-las em quartos acarpetados.

não vim até aqui cumprir promessas
com as quais não se faz uma vida
mas migalhas de pão na mesa
lágrimas escondidas nas mãos.

nem vim para ser são
só porque um rapaz
de dentes muito brancos
sorri na tv e diz boa noite
antes de todos morrerem
sem nenhuma esperança
de mais um milagre
sob a forma de dia.

não vim para dar muita atenção
aos meus iguais seres humanos
prefiro cães que pedem com olhos.

meu amor é um suicida que pulou
por uma janela de vidro fechada
e se tornou meu mal necessário
pois não há nada tão quieto quanto
um coração que parou de bater.

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